quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Valores, Dostoiévski e a Liberdade

O poder é, regra geral, um instrumento que leva os que o detêm a cair na tentação do abuso. A imposição de valores sempre foi um deles. Determinados valores, apesar de este ser genuinamente um conceito carregado de uma ampla subjectividade, vão sendo sucessivamente impostos na defesa de um suposto bem comum. Ao mesmo tempo, uma boa maioria deles vai colocando um outro em causa: o da Liberdade. Curioso é que a Liberdade é, provavelmente, o único valor que, ainda que imposto, não colocaria reservas ao seu incumprimento. Por absurdo, podemos afirmar que quem não quisesse ser livre teria a… liberdade para não o ser. A Liberdade é, de facto, o grande valor da vida humana, a condição indispensável para o ser humano ser gente.

A propósito da liberdade enquanto condição natural do Homem, escreveu Dostoiévski, no seu Cadernos do Subterrâneo, que “se um dia de facto se descobrisse uma fórmula para todos os nossos desejos e caprichos – (…) isto é uma fórmula matemática exacta - então, muito provavelmente, o homem deixaria imediatamente de sentir desejo.”

Da mesma forma, quando alguém julga ter descoberto essa fórmula, e no fundo apenas terá desencadeado uma série de considerações ético-morais baseadas nos seus próprios valores, a imposição cai-nos em cima e leva-nos o desejo – ou a liberdade de desejo e de escolha, como explica Dostoiévski.

Mergulhar na previsibilidade de um mundo carregado de caminhos pré-definidos planeados por outros, e de portas que não podemos sequer arriscar abrir porque alguém nos tirou a chave, é perder esse desejo. E é, no fundo, não viver. É ser “transformado numa peça de um órgão ou algo do género”, como continua Dostoiévski, em favor de um qualquer conjunto de valores entendidos em cabeça alheia serem os certos.

Cada vez tenho menos dúvidas de que vivemos embalados num mundo onde a possibilidade do desejo está menos presente do que devia; onde a vida vai sendo tirada aos bocadinhos a cada pequena obrigação que nos diz pouco ou nada.


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