Tendo sido convidado pela Maria João, para escrever no ” Cons(c)elho” sobre cultura, decidi falar sobre livros de aventuras (tentando assim corrigir uma grande injustiça). Mais que populares estes livros (geralmente lidos na adolescência e na juventude), são marcantes para o resto da vida (afinal quantos homens de 50 anos ainda guardam carinhosamente os seus livros de Emilio Salgari, ou a sua colecção de Tintin). Não pretendo com este texto fazer uma dissertação profunda e generalizada sobre o tema (até por nunca os ter estudado profundamente); pretendo antes falar um pouco sobre os que mais me marcaram.
Fala-se em livros de aventuras e fala-se em Emilio Salgari; fala-se em Salgari e fala-se em Sandokan, o Tigre da Malásia. Foi dos primeiros livros que li, e através dele conheci o oriente longínquo: Não o oriente real da pobreza, da miséria, da doença, da fome, mas o Oriente lendário misterioso, opulento e excessivo. Com Sandokan e com o seu irmão de armas ,Eanes de Gomera (um português com um apurado sentido de ironia) lutei contra a opressão colonial do império britânico, percorri as ruas de Calcutá, embrenhei-me nas selvas malaias e naveguei no longínquo mar da Ásia a bordo dos paraus de Tigre da Malásia.
Mais tarde embrenhei-me em Dumas, principalmente na sua obra prima, os três mosqueteiros. Ao serviço do rei, percorri á desfilada as estradas de França, tentei impedir o assassinato de Buckingam e combati por honra (e acima de tudo por proveito), contra os inimigos do trono e do altar. Através dos olhos de d’Artagnan (uma espécie de Ulisses da idade moderna), vi a sociedade como só um homem com um grande sentido de humor a pode ver. Conheci os grandes do mundo; aqueles que com uma ordem apenas decidem o destino de povos e nações: os Richelieus, os Buckingams, as Anas d’Austria. Mas também conheci os pequenos, a carne para canhão: os Planchets, as Bonancieux, e os próprios 3 mosqueteiros, Atos, Portos e Aramis.
Muito mais tarde (por estranho que pareça), comecei a aventurar-me em alguns romances gráficos. Estes tiveram o seu apogeu na década de 70: o mundo tinha perdido as suas ilusões romanescas sobre a nobreza da guerra e dos guerreiros, ao ver as imagens transmitidas em directo do Vietname. Logo o personagem principal já não é um herói; é o contrário: é um anti-heroi, um renegado, um pária da sociedade, com a qual pouco se identifica. Não é admirado pelos que o cercam, sendo muito pelo contrário desprezado ou odiado. Altamente individualista raramente serve apenas uma causa, e se a serve deve-se a motivos muito próprios.
Dos romances gráficos que li, os que mais marcaram, (pela sua complexidade e pelo seu estilo um pouco "noir") foram Corto Maltese e Blueberry.
O primeiro retrata a história dum marinheiro sem pátria: filho de uma prostituta cigana, e de um marinheiro inglês, cresce no bairro judeu de Córdova, não assumindo assim uma única identidade cultural. Enquanto novo, uma vidente revela-lhe que a sua mão não tem a linha da vida. Corto reage a esta situação cravando-a com uma navalha, , tornando-se assim para sempre, único senhor do seu destino.
Ao lado de Corto Maltese, e de Rasputine (não confundir com o místico russo) , observei as grandes nações a degladiarem-se nos campos da Flandres, assisti ao principio do fim da sociedade aristocrática, com a derrota e morte de Manfred Von Richthofen (o barão vermelho), o seu ultimo campeão. Vi também mais tarde o nascimento de uma nova e mais terrível sociedade, na tundra siberiana, durante a guerra civil russa. Isto tudo e muito mais, vi na primeira pessoa. Mas em nada interferi, a (quase) todas as lutas e combates fui indiferente; não tomei partido. Conheci também pessoas fascinantes: frios senhores da guerra, sensuais (e não menos frias) condessas russas, lideres de sociedades secretas, revolucionários, espias, prostitutas, ciganos, homens santos. Todos eles cumprimentei com um sorriso de desprezo nos lábios. Vi-os no apogeu da sua vida; no auge da sua importância; e vi-os também na hora da sua morte, quando o destino indiferente à classe, educação, riqueza, ou ideais políticos, lhes veio cobrar a sua divida.
Termino falando do Tenente Blueberry ( Mike Donovan ), através do qual conheci o velho oeste americano. A sua história começa pouco após o fim da guerra civil americana: vemo-lo pela primeira vez em “Junta Junction”, de facto branco inconsciente devido ao efeito do álcool, caído numa pocilga. Nessa imagem está toda a história do personagem: o cavalheiro sulista (que se alistou no exercito unionista), o soldado incapaz de se adaptar á vida em paz, o magnifico guerreiro que atravessou a Guerra Civil como se esta fosse uma pista de obstáculos, arrasado pelo que sente e que não pode partilhar, pela morte e destruição que provocou. Do outrora orgulhoso aristocrata georgiano só sobra o velho fato. O resto, pai, bens, amor, foi destruído pela guerra.
Enquanto serve na ultima fronteira Blueberry opta muitas vezes por auxiliar os índios (o que acabará por levar á sua expulsão do exercito), tornando-o assim duplamente renegado. A partir daí Blueberry levará a vida dum pistoleiro e jogador errante, tornando-se em grande medida num herói trágico: sabe que tem os dias contados, que a chegada da civilização ditará o seu fim. Por isso desloca-se sempre para oeste tentando fugir de todos os seus símbolos (o comboio, o juiz, o homem de negócios, a lei) tentando assim adiar o inevitável.
Muitos livros ficaram por falar: o corsário negro, o ultimo moicano, Ivanhoe, O Bobo, a flecha negra, Miguel Strogoff etc. A grande questão é: porque são estes livros tão marcantes, para tantas pessoas? Talvez porque através deles viaja-mos e conheçamos os quatro cantos do espaço e do tempo: Conhecemos o ocidente e o oriente, as selvas e as montanhas, o oceano e o deserto. Não como foram na realidade, mas como deveriam ter sido. Como foram apenas e só na mente dos homens, ou seja na lenda. Ou talvez porque nós, que nos preparamos para ter um qualquer emprego conformista de colarinho branco, ainda tenhamos um pequeno recanto do subconsciente, que quer gritar desesperadamente, “EU NÃO VOU POR AÍ!!”. Talvez queiramos como os heróis recusar o obvio, a conformidade, a igualdade, e tentar contra todas as adversidades , lançarmo-nos na busca pelo “El Dorado”, pelo Shangri-La , pelo Xanadu, pelo Éden perdido no principio dos tempos… Ou talvez não. Talvez só esteja a dizer disparates… O que interessa é que se tratam de bons livros, não devendo por isso ser desprezados; antes lidos na altura apropriada.
P.S.: Tambem publicado no jornal da jp-porto