terça-feira, 21 de outubro de 2008

Até que o Estado os separe

A propósito da promulgação da lei do divórcio por Cavaco Silva, recupero um post que escrevi há meio ano, em vésperas da primeira discussão parlamentar sobre o diploma. Mais importante do que discutir o divórcio (tal como o casamento entre pessoas do mesmo sexo) seria mesmo discutir o casamento civil.

Tempos houve em que nenhum motivo, fosse qual fosse, possuía força suficiente para determinar o fim de um casamento. Felizmente os tempos mudam. Hoje, mais de 30 anos depois da instituição do divórcio em Portugal, o PS prepara-se para fazer aprovar um remake da proposta apresentada há cerca de um ano pelo BE, rejeitada então pela maioria socialista que a rotulou como «divórcio na hora».

Se este tipo de incongruência em tons rosa continua a ser um fenómeno de frequência elevada mas de explicação desconhecida, os contornos da proposta que tem sido noticiada e que será debatida no próximo dia 16 explicam-se de forma relativamente simples: o PS pretende acabar com o divórcio litigioso possibilitando a declaração do fim do casamento de forma unilateral, fazendo uso dos novos instrumentos que a lei disponibilizará para o efeito, nomeadamente o argumento da violação de direitos fundamentais (que poderá abranger as mais diversas situações), num processo totalmente gerido pelos tribunais.

Se, à primeira vista, esta proposta de lei parece vir para revolucionar, na verdade ela representa mais do mesmo. Com efeito, o Estado terá a faca e o queijo nas mãos nas decisões de divórcio e outras questões subjacentes (como a do poder paternal).

Na minha perspectiva, se queriam realmente dar um passo em frente, deveriam atribuir ao Estado um papel meramente instrumental na celebração do contrato de casamento civil (cuja existência considero importante pelo simbolismo social que detém e por permitir o casamento fora do âmbito religioso), fazendo-o imiscuir-se o menos possível na celebração do mesmo, nomeadamente em certos termos nele presentes. Assim, julgo que o momento da celebração do contrato deve ser aproveitado para que as partes (leia-se, os noivos) negociem as cláusulas que dele devam fazer parte, nomeadamente as condições do término do mesmo.

Mais do que a ideia da pura extinção do casamento civil, esta ideia, que não é nova, parece-me a mais acertada para se começar a responder à necessidade de retirar, de forma substancial, o Estado desta relação jurídica, de equilibrar progressivamente os direitos e deveres inerentes ao casamento civil com os das restantes tipologias de vida em comum, e de olhar os nubentes como pessoas livres e responsáveis que são.


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Publicado em 8 de Abril de 2oo8 no Papel, Pedra, Tesoura.

4 comentários:

BSC disse...

Muito bem!!!!!! Mas esta, infelizmente, é a discussão que ninguém quer fazer... preferem "remendos" pontuais a uma reforma de fundo... É PENA!!!!!!!

ana vilela disse...

Será que alguém me pode explicar o porquê de existir um contrato chamado casamento? Eu sou completamente leiga no assunto.. mas os "noivos"(adoro o palavreado) não podem estabelecer um contrato qualquer sobre a forma como dividem o património,(ou não) e c'est finit? quer dizer todas as crianças são contempladas na lei quer os pais sejam casadas ou não, certo?
E quem se quiser casar o que não falta é igrejas, ou mesquitas...

BSC disse...

Ana Inês, essa pergunta poderia levar-nos muito longe... mas a tua interrogação é perfeitamente legítima. Indo por pontos:

1. A filiação (relação entre pais e filhos) tem um regime legal próprio que é (tendencialmente) independente do regime do casamento. É por isso que a bastardia já não é legalmente consagrada e não há filhos legítimos e ilegítimos. Independentemente da relação entre os pais, filhos são sempre filhos.

2. Quanto ao contrato de casamento, enquanto construção de direito civil, remonta ao Direito Romano e deriva de uma ideia na qual ao Estado compete promover e apoiar a constituição de família, e regular os regimes de bens, a filiação, a sucessão mortis causa, etc. Tudo isto tem justificações históricas, religiosas, etc… que não vale a pena analisarmos com detalhe e que, muito possivelmente, já fazem hoje em dia muito pouco sentido.

3. Na actualidade, porém, faz, sim, todo o sentido pôr em causa os princípios subjacentes ao contrato de casamento tal como ele existe.

Em primeiro lugar, fará sentido existirem vários regimes análogos, com direitos e obrigações tendencialmente iguais, mas sujeitos a leis diferentes? É o que se passa com a união de facto e o casamento civil. Na essência são exactamente a mesma coisa, mas legalmente são institutos jurídicos diferentes. É absurdo!

Em segundo lugar, sendo o casamento um mero contrato entre partes iguais (porque perante a lei homem e mulher são iguais, com os mesmos direitos e deveres), faz sentido afastar o princípio basilar do direito das obrigações que é a liberdade contratual e obrigar as partes à adopção de modelos pré-fabricados e a imposições e restrições legais a nível, por exemplo, das relações patrimoniais entre cônjuges?

4. Posto isto, separando totalmente o regime da filiação do casamento, estabelecendo quais os direitos e as obrigações de pais e filhos (independente da situação pessoal dos pais), estabelecendo quais os impedimentos para a celebração de contratos de vida em comum (podem chamar-se assim ou de outra forma qualquer) – assim como são estabelecidos impedimentos à celebração de outros contratos sob pena de invalidade – não vejo porque motivo a essência das relações entre cônjuges não possa ser deixada à sua liberdade contratual, sobretudo a nível patrimonial.

Posto isto, e respondendo à tua pergunta: porque existe casamento civil? Ainda não percebi muito bem...

Tiago Loureiro disse...

Eu, que também sou leigo no assunto (direito, só o do trabalho; casado nunca fui), sou por princípio contra a existência de um contrato de casamento civil. Se a opção for entre um casamento civil como o que existe e nenhum, a minha posição sai reforçada: acabe-se com ele. Contudo, a possibilidade de uma reforma desse contrato, que acabasse com (aproveitando as palavras da Beatriz) os “modelos pré-fabricados”, dando liberdade aos noivos para construírem o seu próprio modelo, e fizesse convergir os “vários regimes análogos” em termos de obrigações e deveres, não seria de desprezar. Seria um casamento civil quase simbólico para, como digo no post, manter o simbolismo social para quem ele for importante e por permitir o casamento fora do âmbito religioso (julgo que o casamento católico impõe, em paralelo e automaticamente, a celebração de contrato de casamento civil).